Os Laços entre a Motricidade e o Inconsciente



A psicomotricidade será abordada nesse trabalho, a partir da visão da psicanalista Françoise Dolto, que mostra com bastante clareza em seus casos clínicos, a diferença entre Imagem Inconsciente do Corpo e Esquema Corporal, relatando o quanto a motricidade pode ser inibida ou prejudicada a partir do direcionamento inconsciente de cada sujeito.  
Os casos clínicos relatados por ela em seu livro “A imagem inconsciente do corpo”, retrata a história de crianças saudáveis quanto a seu esquema corporal, estando o funcionamento deste, comprometido por imagens patogênicas do corpo. A motricidade aqui está ligada ao sintoma pelo seu fantasma.

Esquema Corporal e Imagem do Corpo

O esquema corporal é uma realidade, um corpo orgânico, semelhante em todos da espécie humana. O corpo orgânico é um medi/a/dor (lê-se mede a dor) que se organiza de acordo com as relações que o sujeito adquire com o contato com os outros. Inicialmente seus pais, ou cuidadores e posteriormente com o mundo e suas relações sociais.
Na condição de mediador, o esquema corporal está ligado ao consciente do sujeito, sujeitando-se a corresponder aos fantasmas inconsciente de cada um. Dessa forma é possível que a pessoa tenha um esquema corporal em bom estado, desprovido de lesões, mas sua utilização funcional subjugada é correspondente a uma imagem do corpo perturbada, adoecida, invalidando o funcionamento saudável do corpo.

É comum também que o esquema corporal enfermo coabitem com uma imagem do corpo sã. Uma criança acometida de paralisia muscular mas não sensitiva, tendo ocorrido a doença após a idade de três anos, onde ela já havia começado a andar e adquirir a continência esfincteriana, seu esquema corporal mesmo atingido pela paralisia, pode permanecer com a imagem do corpo saudável. Como nos mostra os desenhos dessas crianças ou quando elas se imaginam correndo e pulando em suas histórias relatadas aos pais ou analistas. Projetando em sua verbalização uma imagem do corpo compatível com o período antes da doença, simbolizada  em suas palavras.


A imagem do corpo ao contrário do esquema corporal é específica de cada ser humano, está ligada a este, e a sua história pessoal, sua ligação se faz diretamente com o inconsciente, exprimindo-se quando associada à linguagem consciente, utilizando metáforas e metonímias que se referem a essa imagem do corpo. Quando não expressadas através da linguagem verbalizada, podem expressar-se com a linguagem do próprio corpo.
A imagem do corpo é resultado de nossas experiências emocionais. “Ela pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante.”
( Françoise Dolto , pg 15.).
A imagem do corpo é uma memória inconsciente e atual de todas as nossas vivências reais ou imaginárias.

Caso Clínico 

Um rapazinho, estudante da oitava série, com quatorze anos, aluno brilhante, porém “muito nervoso”, me foi trazido para uma consulta: queixam-se na escola de que ele dá pontapés compulsivos nas carteiras, até despregá-las do chão. A mãe que acompanha o filho, também apresenta as pernas machucadas, ulceradas ao nível das tíbias. Além das pernas, ela me conta que são igualmente visados por esta ação insólita, o pé da cama conjugal do lado onde ela se deita, assim como o pé da mesa familiar do lado onde costuma sentar-se.
Por ocasião deste primeiro contato, a única coisa que o menino pôde dizer de seu procedimento, foi: “eu não posso agir diferentemente, é mais forte do que eu... – Mas, como explica que você vise sempre, com este ato, sua mãe e não seu pai?  - Eu não sei, não faço de propósito”.

Dizendo não saber desenhar, escolhe a massa de modelar e constrói um poço à antiga, reproduzindo de modo muito artístico. Observo nesse momento: “um poço, o que você poderia dizer disso? – Bem, tem água no fundo, é um poço de uma época antiga, agora, não há mais poço. –Sim. O que mais se diz ainda, por vezes que se esconde no poço? ” E juntos acabamos, assim, falando do poço e da verdade nua que se supõe poder sair dali. Terminada a sessão, ao tratarmos do encontro seguinte, o rapazinho, apesar de parecer desembaraçado me diz: “Ah, é preciso perguntar à mamãe. – Porque perguntar à sua mãe, você mesmo não sabe de seus dias livres? –Não, é preciso perguntar à mamãe.

A mãe entra e senta-se à esquerda do filho. Enquanto me fala dos dias possíveis para as sessões seguintes, o rapazinho pega na mão esquerda a mão direita da mãe e conduz o indicador dela a acariciar o interior do poço modelado, sem que ela, que continua a falar comigo, pareça se dar conta do fato. Em vez de deixá-lo sair com a mãe, digo a ela: “ a senhora poderia esperar um pouco, quero conversar ainda com o seu filho”. Ela sai e eu pergunto ao garoto: “ o que quer dizer o gesto que você fez com o indicador de sua mãe na modelagem? –Eu? Como? Eu não sei...”(ele parecia surpreso e até mesmo aturdido). Ele responde, pois, como se houvesse esquecido, como se não tivesse se dado conta de nada. Eu lhe descrevo então o que o vi fazer. E acrescento: “ em que P faz pensar, o dedo de sua mãe, no buraco deste poço? –Bem.... Eu não posso ir ao banheiro, mamãe não me permite ir ao banheiro do colégio porque é preciso que ela veja, que ela controle sempre o meu cocô. –Porque? Você tem desarranjos intestinais faz muito tempo? –Não, mas ela quer, e ela me faz cenas se faço cocô no colégio. –Vá buscar sua mãe “.

A mãe retorna, e fica confirmado que ela, tampouco havia notado o jogo com seu dedo no poço. Eu lhe digo que o filho (sempre presente) me falou da necessidade que ela tinha de verificar seus excrementos. “Bem, senhora, não é o dever de uma mãe verificar o bom funcionamento do corpo de seus filhos? Mesmo ao meu filho mais velho (um moço de vinte e um anos), eu massageio o ânus a cada vez que ele evacua. – Ah, sim e porquê? – Foi o médico que me mandou fazer isto. Quando meu filho mais velho tinha dezoito meses, teve prolapso do reto, e o doutor me disse que eu lhe massageasse o ânus após cada evacuação, para fazer entrar este prolapso.
  
Foi em torno deste problema que se organizou, com a pré-puberdade, a doença, pretensamente nervosa, deste garoto de quatorze anos, cuja mãe não suportava que seu funcionamento vegetativo se tornasse autônomo.
O Garoto traduzia, assim, seu ciúme com respeito ao irmão mais velho, que tinha direito as prerrogativas da massagem anal da mãe, enquanto que a ele a mãe impunha apenas um controle visual dos excrementos: a ele, que não tivera a “sorte” de ter um prolapso no reto quando pequeno.

O poço era a projeção de uma imagem parcial do corpo anual; ele representava o reto do garoto, o qual associava a verdade da sexualidade do corpo da mulher ao gozo do excremento. Ele permanecera, em suma, em uma sexualidade anal fixada como tal pelo desejo perverso de uma mãe inocentemente incestuosa em relação aos filhos, sob a cobertura da medicina e do “dever” de uma mãe no tocante ao “bom funcionamento” do corpo objeto de seus filhos.

Este fato permite compreender também o significado do sintoma motor de agressão por pontapés. A motricidade que, na medida em que adaptada à sociedade, é uma expressão do prazer anal sublimado, estava, neste garoto, alterada. Seus dois membros inferiores chegavam ali e agiam em seu sintoma como substituto do terceiro membro inferior: o membro peniano. É com o pé que ele batia nas pernas da mãe, por não poder penetrar em sua vagina com o pênis.
Vemos, enfim, como se dava o jogo de rivalidade com o seu irmão mais velho, um primogênito que só de maneira imperfeita podia constituir a figura do “Eu” Ideal, sendo mais um modelo regressivo cujo lugar, o mais novo, tal como um bebezinho, gostaria de tomar.

Conclusão:

Somos formados por um esquema do corpo que para se sustentar e comunicar-se com os outros, possui o suporte da imagem do corpo, nessa inter-relação é que temos a possibilidade de estar no mundo e nos situarmos em cada situação do nosso cotidiano, de uma forma sadia ou sintomática, segundo a nossa história.

Ana Carlênia Oliveira Bastos.
Psicanalista.
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Referência bibliográfica:
Dolto, Françoise A IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO.  Ed. Perspectiva, coleção: Estudos

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